Boas.
Fica aqui o Relato da Expedição realizada em Fevereiro de 2009, pelo Nuno, Peseiro e Quim.
Este Relato ainda despertou mais vontade de fazer a Expedição de Maio de 2010.
A publicação deste Relato foi autorizada pelo Quim.
“Estou num quarto de hotel dum vilarejo das imediações de Sevilha, num domingo ensolarado, esperando que as horas passem até segunda-feira, para que seja substituído, pelo menos, um dos dois pneus deteriorados da viatura de acompanhamento e apoio às motas.
Uma pedra saliente numa das muitas pistas rápidas do Sahara Ocidental provocou uma brecha no primeiro; uma incógnita um rasgo no segundo, numa via rápida de Espanha.
Com tempo para reflectir recordo a viajem que três pessoas empenhadas em atravessar o Sahara Ocidental (ou Sahara Atlântico como Marrocos gosta de nomear) realizaram, pelo seu interior e por fora de estrada, em duas motas e, um carro que também prestou apoio logístico aos veículos de duas rodas (etapas de cerca de 1000 Km sem possibilidades de abastecimentos a isso obrigaram)!
Inicialmente propúnhamo-nos começar a parte significativa da viagem – todo-terreno – em Assa ou Tan-Tan, duas pequenas cidades no extremo sul da parte territorial antiga de Marrocos (a) mas como dispúnhamos mais dias que o inicialmente previsto, decidiu-se iniciá-la a partir dum empreendimento hoteleiro, perto de Guelmim, o albergue Bou Jerif.
Após se ter deixado o atrelado neste albergue, partimos, eu numa Suzuki DR650SE, o Peseiro numa Honda Africa Twin 750 e o Nuno Ribeiro com um Toyota Land Cruiser HDJ80.
Em Guelmim atestámos os depósitos e alguns jerry cans de 20 litros pois a etapa até Smara iria ser longa e sem possibilidades de abastecimento pelo caminho. Para mim iria ser o teste às capacidades da Suzuki em afrontar as montanhas do Anti Atlas com um depósito de 30 litros de capacidade cheio de gasolina!
Foi uma etapa longa e espectacular! De montanha na parte inicial, sinuosa, com alguma pedra, decorrendo a vários níveis de altitude e com algumas dificuldades imprevistas devido à chuva que tinha caído recentemente que resultaram no atascanço do jeep, só possível de retirar com recurso ao guincho e, providencialmente, a um monte de pedras próximo.
Após muitos quilómetros começamos progressivamente a descer e a pista a tornar-se cada vez menos nítida metendo-se por vales cada vez mais estreitos e… de repente, estávamos perante o que se iria tornar no primeiro grande desafio da viagem: o oued Draa, um dos maiores oueds de Marrocos serpenteando por entre montanhas com muita vegetação e pedregulhos à mistura. Não tinha muita água mas a pista cruzava-o precisamente numa zona alagada e, tanto a montante como a juzante a pedra não permitia alternativa. Um banho para inspeção do leito tornou claro que a melhor solução seria puxar as motas com o guincho do jeep, o que foi concretizado, com as motas a passarem quase com o motor completamente dentro de água.
Mas para as motas o pior estava para vir. Msied, pequena localidade entre Guelmim e Smara, estava próxima, à nossa frente, encaixada entre duas linhas montanhosas, espraiava-se um vale imenso, um chott (b) apareceu à nossa frente. O que normalmente é uma pista de velocidade, quando seco, transforma-se num ringue de patinagem quando molhado! Ainda não tinha secado, mal entrámos fomos ao chão e era muito difícil manter as motas de pé; tínhamos que circular muito devagar e com as pernas abertas, deslizando as botas pelo solo como anteparas laterais!
Passou-se Msied, as montanhas começaram progressivamente a desaparecer e o terreno a tornar-se mais plano; cruzou-se a antiga linha de fronteira entre Marrocos e o Sahara espanhol.
Com a aproximação a Smara e uma nova estrada em construção, tomou-se uma pista alternativa por sul que, não foi do agrado dos militares que patrulhavam a zona. Perseguiram-nos, obrigaram-nos a parar, identificaram-nos e escoltaram-nos até às imediações da estrada. Tomámos pista por norte. Chegámos a Smara com 605 Km de percurso fora de estrada em 4 dias.
O dia 11 de Fevereiro amanheceu auspicioso numa pequena cidade pejada de militares – a linha de demarcação com a Polisário (c) não fica longe. O céu pouco a pouco tinha-se tornando cada vez mais límpido deixando para trás as ameaças de chuva. Este iria ser o primeiro dia da grande travessia!
Toda a parte da manhã decorreu num frenezim: adquirir mantimentos, encher as vasilhas de carburante, reorganizar a bagagem no carro que se tinha tornado pequeno para tanta coisa. Almoçámos e partimos.
No início a pista, que tinha sido do ‘Dakar’, ondulava por terreno levemente pedregoso por entre pequenas colinas. Ao fim de poucos quilómetros estávamos a acelerar por caminho em terreno cada vez mais plano e de horizontes cada vez mais amplos.
Tínhamos escolhido realizar a travessia por itinerário mais perto da linha de separação entre a parte ocupada por Marrocos e a Polisário, segundo uma rota obtida dum livro de percursos todo-terreno desta região (Gandini). Todo este trajecto era para nós uma grande incógnita; não sabíamos bem quais as condições que iríamos encontrar, nomeadamente, quanto ao tipo de terreno, orografia da zona, condições das pistas e, principalmente, o tipo e a frequência dos eventuais controles militares, que pelo facto de ir-mos circular tão perto da fronteira com a Polisário concerteza deveria estar fortemente controlada, pairando sobre nós o receio de não nos ser permitido realizar integralmente o itinerário assumido; não só por isso mas também pelo facto de transitarmos perto duma fronteira fortemente minada. Mesmo quando nos afastávamos da zona fronteiriça, pesava sempre na nossa consciência o receio de se pisar alguma mina ‘tresmalhada’, num território que foi palco duma guerra sangrenta ainda não há muitos anos, embora, oficialmente, o governo marroquino declare ter a parte do região sob sua jurisdição desminada, continua havendo notícia de rebentamento de minas que têm provocado algumas mortes entre a escassa população local. Quando seguíamos por pista, com traços visíveis de passagem de veículos, seguíamos descansados mas, quando tínhamos que seguir por fora-de-pista – aconteceu várias vezes – porque a pista terminou, desapareceu ou, porque a rota escolhida implicava saída de pista, não nos sentíamos tão seguros.
Inesperadamente, só fomos controlados uma vez e por um pequeno destacamento militar que, após ter comunicado nossa presença, deve ter recebido instrucções para nos deixar seguir.
A certa altura distingo ao longe uma coisa grande e disforme a vir ao nosso encontro e pela mesma pista… Conforme se aproximava mais nítido ficava e mais se ouvia o ronco forte que fazia: era um tanque de guerra! Seguido de outro e alguns camiões carregados de tropa que nos acenavam à nossa passagem.
Ainda passámos rente a um grande aquartelamento militar mas passámos a tão grande velocidade que não lhes demos, eventualmente, tempo de nos mandarem parar.
Ao fim de 970 Km e 4 dias estávamos em Lamhiriz (Barbas) já relativamente perto da fronteira mauritana. Estava realizado e concretizado o principal objectivo do nosso empreendimento: a travessia do Sahara Ocidental pelo seu interior por fora-de-estada!
Foram 4 dias intensos e inesquecíveis, por pistas bastante rápidas; frequentemente circulávamos, de mota, entre 80 a 100 Km/h, ‘puxados’ pelo jeep que também frequentemente desaparecia à nossa frente! Este andamento teve os seus custos: a embraiagem da DR650 começou a queixar-se, patinando quando acelerava a fundo em mudanças altas (eventualmente por ter andado com escassa folga no cabo de comando) e à Africa Twin teve de lhe ser retirada toda a estrutura frontal que não aguentou o tratamento imposto principalmente pelos pisos pedregosos.
Ao jantar enquanto comíamos peixe frito e carne grelhada pôs-se a questão de saber o que iríamos fazer com os dias livres que ainda tínhamos para usar. “Porque não aproveitar para outra idêntica travessia, agora de sul para norte?” Propus.
Aprovada esta proposta, na manhã do dia 15, tornámos a encher os depósitos e o vasilhame, de combustível, vital aos nossos intentos de afrontarmos o deserto durante mais umas centenas largas de quilómetros sem possibilidades de abastecimento.
Desta vez tomámos o itinerário mais a oeste, que seguia direito a Smara mas, após alguns quilómetros depois de Bir Anzarane, flectimos para noroeste, por fora-de-pista, saindo duma pista do ‘Dakar’, para apanharmos outra pista do ‘Dakar’, que permitia ligação a Laayoune; onde terminámos os mais 953 Km em 3 dias, duma travessia em autonomia total.
Curiosamente, por não ser tão pelo interior, este trajecto foi um pouco mais incómodo e monótono que o anterior não permitindo velocidades tão elevadas. Acabou também por ser mais desgastante, nomeadamente para mim: conduzir de pé era penoso devido ao vento forte que soprava de frente; sentado era cansativo devido à secura da suspensão traseira (talvez por estar cansada da vida que tem levado).
Em termos relativos o de norte para sul, que em grande parte do seu traçado estava bem identificado por pequenas elevações de terra, marcação típica dos itinerários do ‘Dakar’, foi mais agradável e variado, de terreno mais plano e menos pedregoso e de piso predominantemente duma mistura de terra e areia com, por vezes, algumas acácias á mistura, com pistas a perder de vista e horizontes profundos. Chegámos a circular por autênticos mares de terra arenosa sem vegetação ou qualquer indício de elevações até onde a vista alcançava, rodava-se 360 graus e não havia nada em que pudéssemos focar a nossa atenção: era o deserto na sua máxima expressão!! Com a aproximação da noite montávamos o acampamento, preparávamos o jantar – acendíamos os fogareiros, misturávamos os condimentos, abria-se uma garrafa de vinho (requintes de se ter viatura de apoio!) – tagarelávamos um pouco e, rapidamente o cansaço acumulado da jornada nos convidava a entrar na casa de campanha. Eu normalmente ficava até mais tarde, descarregando e trabalhando o percurso do dia, preparando outros futuros e, quando finalmente, me propunha ao descanso merecido, olhando para um céu límpido, imenso, pontilhado duma miríade de pontos luminosos, intensos, era como se estivesse no centro dum grandioso planetário cujos limites eram o horizonte longínquo! E, podia usufruir na sua plenitude de um dos aspectos mais caracterizantes do verdadeiro deserto: o silêncio, resultante duma total ausência de ruído! (d)
Associa-se frequentemente deserto a areia e a dunas mas por onde andámos vimos muito pouco destas formações morfológicas; ou porque simplesmente não existiam ou porque as pistas tendem a contornar as zonas dunares ou a passar os cordões de dunas pelos sítios onde elas são mais escassas permitindo uma passagem mais fácil.
Passámos por Bir Anzarane. Um ponto marcado no mapa Michelin como uma localidade: se já foi localidade, agora só restam uma mercearia decrépita e um aquartelamento no alto dum pequeno monte, cujos ocupantes nem se dignaram vir ter connosco: aliás, neste trajecto nunca fomos controlados.
Chegámos a Laayoune, por fora-de-estrada. Capital dum território em guerra há poucos anos, ainda hoje rodeada de muros de terra como linhas defensivas, estes nada podem contra as novas ameaças duma nova guerra, a guerra contra o meio ambiente, espelhada nos campos limítrofes: em vez de minas, espalha-se lixo e, pululam milhares de sacos de plástico!
Laayoune está perto do mar e seguir junto ao mar seria boa opção para variar de ambiente.
Ainda liguei o GPS do telemóvel para através do Google Maps carregar os mapas fotográficos da zona a ver se arranjava maneira de arrancar directamente da cidade mas só se via um campo dunar intenso para noroeste: infelizmente para mim lá tive que gramar uns 5 quilómetros de estrada até à orla marítima para apanhar primeiramente uma pista em areia e, pouco depois, como a maré estava baixa, estávamos a descer à praia para percorrer 65 Km pela areia compacta junto ao mar (e), a tempo de comer uma óptima tajine de peixe em Tarfaya!
Chegámos a El Ouatia, imediação marítima de Tan-Tan, após uns ‘estafantes’ 200 Km de asfalto!
Como Bou Jerif ficava em frente decidimos cortar caminho para fazer ao longo da costa os últimos 226 Km de fora-de-estrada até ao albergue, com uma lindíssima parte final através duma pista costeira sinuosa por montanha (Anti Atlas) subindo e descendo por entre pequenas praias encaixadas entre montes!
E foi assim que satisfiz a minha curiosidade em ver o que estava para lá do horizonte visível da estrada costeira que atravessa o Sahara Ocidental.
Mas, mais importante que ver o que vi, foi sentir o que senti!
(a): Antes da ocupação do Sahara Ocidental pelo reino marroquino, esta região do deserto do Sahara era uma colónia espanhola que fazia fronteira, a norte, com este reino.
(b): Depressão de piso terroso e plano que quando chove fica húmido ou alagado.
(c): Grupo militarizado que anseia pela independência do Sahara Ocidental.
(d): Excepto quando havia um ruído ‘parasita’ de fundo com origem no interior das tendas.
(e): Para que conste, neste país circular pela orla marítima não é proibido e as gentes locais circulam frequentemente por ela.
Saudações nómadas!
Quim”
Comentários
2 comentários a “Expedição ao Sahara Ocidental”
Já conhecia este relato e tinha visto as fotos do Quim…
É sempre um prazer (re)ler crónicas de quem verdadeiramente gosta deste tipo de viagens!!!
É como dizes: “mexer” neste “caldo” aida aguça mais o apetite para 2010 🙂 🙂 🙂
AbraTTo
Boas,
se a vontade de viajar pelo Sahara ocidental já existia, é com relatos como estes que o desejo de lá estar se torna mais real.
Inté!